29/09/2019

Dos temporais


Mamãe punha blusa e luvas
quando o tempo trovejava,
e eu sem saber se era a chuva
ou o meu pai que chegava...

E no apagão da rua
só o relâmpago alumiava:
mamãe no chão, vista turva,
lutando com a chuva brava...

Quando o temporal passava,
dia claro, eu encontrava
telhas, brincos no gramado.

E de cada tempestade,
nas estantes da orfandade,
guardo um souvenir nublado.

21/09/2019

O Jetski

Quando o poema chega surfando sobre as ondas,
um deus antigo e bronzeado que viesse
das praias radioativas do Caribe,
quando o poema chega rabiscando
um evangelho sobre as águas que ainda há pouco
tu pescavas garrafas de vinho anos 2000,
deixando um rastro negro, não se sabe
se de tinta de polvo se petróleo,
quando ele vem, que podes tu, mero ciborgue,
fazer além de ajoelhar no teu barquinho,
tuas mãos quais fossem búzios retorcidos,
e cantar Senhor, Yeshua ou Jetski,
eu sou Teu mastro, me governe, ó Musculoso,
pelas águas profundas desta vida,
que eu já fui homem, deixa eu nadar no iridescente
lago em que as sereias se mutilam!

17/09/2019

Blitz


Lembra, bb, aquela vez,
nós duas, tão suspeitas,
deitadas no asfalto...
Aquilo que vínhamos cultivando
em alta velocidade,
fora do carro devia parecer
tão perigoso
que estranho seria se qualquer viatura
não nos mandasse encostar,
que estranho seria
se nenhum policial imberbe
nos deitasse no asfalto...
Mas na revista minuciosa
que nos fizeram
não encontraram nada ilícito
com que nos acusar (apesar
de todos os indícios)
e tiveram, tristes meninos,
de nos deixar ir... nós que,
muito antes disso, já nos sentíamos
completamente livres...
E fomos, perigosíssimas,
até o motel mais próximo.

16/09/2019

Outra mulher alvejada

Você nunca pensou em tomar alvejante
enquanto lavava roupa. Até que pensa. Basta uma vez.
Você ficaria surpresa com o número de mulheres
que são encontradas ao lado do tanque, as pernas
em arco, a boca espumando, alvejadas
domesticamente. Você não sabia que lavar a roupa
podia ser fatal. Te ensinaram a tirar manchas, mas não
como identificá-las — se é molho, vinho ou sangue.
Lavar é verbo de guerra. Teu tanque, tua trincheira.
Você leva o alvejante pra perto da boca:
o hábito já disfarçou o cheiro, só lhe resta
conhecer o gosto. Não é tão ruim, você pensa,
os meninos ainda terão roupas limpas
pra resistir por mais duas semanas.

09/09/2019

Minha experiência com patins

Compraram meus patins foi na Avon
há tantos anos, nem era nascida.
Com eles deslizei e fui ao chão
vezes demais, tão só, tão distraída.

Se me ouviram chorar, foram os sons
dos patins em manobras suicidas.
E os momentos felizes passei com
os joelhos totalmente em carne viva.

Mas quando vi meninas no jardim
e quis andar, descalça, junta delas,
caí, quebrei as pernas. Era o fim.

Mamãe, aos pés da cama, hoje ela
me disse: Foi-se a idade dos patins.
Amanhã abriremos as fivelas.

12/08/2019

Stories

Sou sua melhor amiga. Contratada
pra desviar das redes todo o esgoto.
Quando você está que é um terremoto,
eu te substituo na balada.

Sou quem sorri, perfeita, pras suas fotos
quando você se encontra amordaçada
(e quem olha pras selfies não vê os cotos
de suas mãos, que já foram amputadas).

E quando você se jogar da escada,
do quarto andar, do carro em movimento,
ou pender da cortina, ou afogada,

ou overdose, ou miolos ao vento...
estarei com você, amiga amada,
filmando o seu incrível passamento!

04/08/2019

A ilha

Nós chegamos à ilha ou foi a ilha
que de nós mansamente se acercava?
O caso é que encalhamos nossa quilha

numa porção de luz: a ilha brilhava.
Depois de tantas noites navegadas,
por fim a nossa âncora aportava

nessa ilha ultrarreal, pois inventada.
Era manhã na ilha, mal chegamos
estendemos cadeiras na enseada

para falar da vida, e falamos
dos naufrágios, dos livros que, perdidos
em alto-mar, enfim reencontramos

dentro da ilha, quais filhos crescidos,
e dos que, nas viagens, porto a porto,
nadaram sem retorno para o olvido...

A ilha era maior que o nosso povo,
cabia para cada um uma casa.
Queríamos, no entanto, um mundo novo

e antes de casas fabricamos asas
e voamos pela ilha, deslumbrados
com tudo aquilo que escapou a Nasa,

e a nós, sempre reféns dos astrolábios,
olhos vidrados em telões incríveis.
Como haviam mais árv'res que soldados,

mais aglomerações do que desníveis,
mais telas por pintar do que museus,
traçávamos caminhos impossíveis...

sem prédios, arranhávamos o céu.
Foi quando sussurrou uma menina:
E se for tudo um sonho? E anoiteceu.

A frase estremeceu nossas espinhas;
dos pares bruscamente nos soltávamos,
as pipas desprendiam-se das linhas...

E se for tudo um sonho? indagávamos.
Dormir era acordar para a outra vida
em que diariamente naufragávamos?

Nos deitamos na praia anoitecida,
alguns vendo se a ilha dissolvia,
outros bolando cartas suicidas

— eu olhava era o mar, e o mar se abria...
Que seja, disse alguém, a ilha foge
pois é feita de areia e poesia.

Nada é nunca o que era, que por hoje
nós possamos viver nesta utopia.


16/07/2019

Por não saber onde botar as mãos

Por não saber onde botar as mãos
tenho puxado a cordinha
antes do meu ponto
e andado na direção contrária
a minha casa, enveredado por ruas
estranhas, uma vez
quase me perdi.

Por não saber
onde botar as mãos
tenho as posto nas grades
dos portões
esperando
que os cães raivosos
avancem.
Mas os cães tem se mostrado dóceis
e mesmo os que mordem
não perfuram fundo, não me contaminam
de sua raiva.

Por não saber onde
botar as mãos
tenho acenado para
desconhecidos
que às vezes ignoram
e seguem
que às vezes retribuem
e seguem
que às vezes se aproximam
e dizem
o preço.

Tenho escrito diários ilegíveis
nas margens dos livros
da biblioteca,
tenho assinado meu nome
em listas de presença
de velórios,
em planos de telefone
(mas não me liguem),
tenho pichado nos muros
frases infantis
que logo se misturam
às outras
por não saber
onde botar
as mãos.

26/06/2019

A pena

Às vezes eu penso que poderia viver
e nunca escrever um poema.
Uma vida calma, sem disparates.
Sem nunca me sentir acuado
por um pássaro que invade o quarto,
os olhos amarelos e terríveis.
A poesia não seria mais que um termo.
Só esperaria pelas coisas
que realmente importam: o próximo
ônibus, o próximo sexo, o próximo filme
da Marvel.
E pombos nunca mais invadiriam o quarto
e me acuariam em minha própria casa.
E moças nunca mais me deixariam mudo.
Sem compreender as palavras,
talvez fosse mais fácil dizê-las.
Sem qualquer avalanche, pedir um suco,
uma bala que seja. Meu sonho é uma bala
daquela azedinha, mas por que só consigo
apontar a de iogurte? Meu sonho
é olhar para a velha no trem, e dizer,
sem poréns, será chove? Ah,
o mundo seria plano e habitável!
Os livros poucos, e perecíveis...

Em vez disso encaro o pássaro:
que engenhosa estrutura é necessária
para sustentar um voo.
(Uma vez, no sítio, quando destripavam
a galinha eleita para o nosso almoço,
vi como as penas também cresciam
furtivamente por entre as vísceras.)
Encaro o pássaro: é mais que penas.
É pena e sangue.

Fendas enormes se abrem na casa,
o pássaro prepara o voo,
fechar as portas é um gesto inútil.
Inútil erigir qualquer construção
se um pássaro às três da tarde
derruba tudo com um bater de asas...

12/06/2019

Os primitivos



Dois gigantes que se amam,
num país dos mais remotos,
são, vejam vocês, a causa
principal dos maremotos.
Dois gigantes que se amam
(dadas as devidas pausas
do amar para naufragar)
navegam contra a corrente:
mais que superfície, amar
é nadar internamente.

Na multidão, dois gigantes
juntos estão sempre a sós,
pois só existe o que é amado
(como há diferença entre os
que são vistos e enxergados,
que gritam e os que tem voz).
E, no entanto, só se encontram
quando estão entre lençóis.

Entre lençóis, dois gigantes
se procuram no escuro
— o que de carne é oco,
o que de sangue é duro.
Justamente aquele pouco
que encontram é o que procuram.

Quem da praia olha esse embate
passado de gerações,
vê só, num perfeito engate,
um casal febril de anões.


*Foto: Diane Arbus, Young couple on
a bench in Washington Square Park, 1965

10/06/2019

Do toque (ou Don't touch)

Tocar em uma pessoa
é gesto quase impossível,
porque uma pessoa é vária,
e todo toque, ambíguo.

Vemos o que está na cara,
mas não vemos o invisível:
a distância que separa
duas pessoas: dois abismos.

Mesmo a bala que dispara
ao encontro do intangível,
por mais que perfure, para
na superfície possível.

Tocar em uma pessoa
é transpassar o inimigo,
é escavar uma escara
até seu núcleo terrível.

Nunca estenda sua mão para
tocar em um corpo vivo.
Melhor se toca  repara 
em mortos, flores, jazigos.

30/05/2019

Ave Maria Sapatã


Maria Sapatã, Sapatã, Sapatã
De dia é Maria, de noite, Lesbiatã





As sapas tem pouca vida
real e mesmo nas novelas
são por vezes explodidas
dentro do shopping. Mas elas

vão vivendo como podem,
da forma que mais convém:
vez ou outra, quando fodem,
descarrilham méis e trens,

capotam carros na estrada,
derrubam aviões também
com suas rotas transviadas
para os clitóris do além.

De manhã são encontradas
nuas em quartos de hotéis,
docemente assassinadas
por obscuros quartéis,

entre garrafas vazias
e consolos de hortelã.
Não você: você, Maria,
não é sapa, é sapatã.

Mas Maria, as sapas, elas
nunca cansam de morrer.
Umas pulam da janela,
outras pulam de prazer.

Com seus vibradores voam
em banheiras ou chuveiros,
e seus corpos se amontoam
diariamente nos banheiros,

umas eletrocutadas,
outras se olhando no espelho
e não vendo nada. Nada
além de um ser de esguelho.

De manhã são encontradas
em decúbito dorsal
por suas fiéis empregadas
que usam Veja, soda e cal.

Mas Maria, as sapas, elas
morrem todo santo dia,
mesmo aquelas que são belas,
mesmo as filhas de Maria.

Morrem muito no cinema,
no teatro, nas revistas,
nos artigos, nos poemas
e no ginecologista;

morrem tomando cerveja
com as amigas no domingo,
morrem indo pra igreja,
morrem voltando do bingo.

De manhã são encontradas
em decúbito ventral,
secamente violadas
em manchetes de jornal,

entre as notícias do dia
e as promoções da Havan.
Não você. Você, Maria,
não é sapa, é sapatã.

Dizem que em média, Maria,
uma sapa é assassinada
trinta e três vezes ao dia.
Na avenida, na calçada,

no parque, na homilia,
no ônibus, no elevador
no almoço de família,
no twitter, no humor,

no uber, na padaria,
no colégio, no divã,
não você: você, Maria,
não é sapa, é sapatã.

Mas Maria, as sapas, elas
já estão por toda parte,
em seus quartos sem janela
vive um sol que brilha e arde.

Para seres que, sem gozo,
se vomitam e se enlamam,
há nada mais perigoso
que duas sapas que se amam.

Duas sapas que se amam
incomodam muita gente,
cada vez que elas se engancham
tomba fulminado um ente.

É por isso que as sapatas
são por vezes encontradas
desovadas, meio às matas,
quais aranhas enroscadas.

Duas sapas numa moto
desencadeiam aneurismas;
muitas sapas, quando em foco,
revoluções, cataclismas.

É por isso que as sapatas
aparecem sobrepostas
em suas casas (casamatas),
suicidadas, decompostas.

No aeroporto, quantas malas
levam sapas picotadas...
Basta olhar: em cada opala
há uma sapa esquartejada.

Não você. Você, Maria,
não se dá com morte vã.
Se de dia é Maria,
de noite é Lesbiatã.

AVE MARIA SAPATÃ,
metade sapa, sapata,
e outra metade Satã.
Você vive em quem te mata,

nos buracos mais profundos.
Nova mulher das cavernas,
você leva o fim do mundo
guardado por entre as pernas.

Nunca vão te perdoar
por não ter dado a luz,
que guardada, qual penhoar,
entre tuas pernas reluz.

Por jamais querer viver
à sombra de algum Jesus,
Sapatã, vai ser você
quem vão pregar numa cruz.

Eles te apedrejarão
em cada praça ou esquina,
mas pedras não chegarão
a sua alma luciferina.

Com frequência, Sapatã,
vão te estuprar. Tentarão
e no entanto virgem, sã,
em quem conhece a oração.

Uma oração nunca morre.
Depois do insano calvário,
virá sua glória, e ela escorre
pelos lábios de um rosário.


21/05/2019

Mulher confundida com nuvem




Essa mulher gostava
de pisar o chão,
mas muito cedo a botaram,
intocável, no céu
se aproveitando
da inconstância típica
da sua espécie.
Apontaram dedos
para a mulher de ar
e disseram eu vejo um rosto,
e disseram eu vejo um bicho,
e disseram eu vejo um sexo,
a mulher, leve, flutuava
em pleno domingo
se moldando aos caprichos
do olhar de quem a visse,
até que juntou-se a outra,
até que juntou-se a várias,
até que a mulher nublou
e choveu sobre toda a gente,
gotas da mulher prenderam-se
nos fios elétricos,
a mulher encheu bueiros,
inundou escritórios,
causou catástrofes
e alguns resfriados,
a mulher secou
junto às roupas do varal,
deu de beber a gatos
de cemitério,
engendrou arco-íris
em becos sinistros.
Os pais falam em fuga,
os jornais em assassinato,
mas as gramas da praça
conhecem a verdade.


17/05/2019

Você também



"Tudo pertence ao tribunal."
(Kafka, O processo)


Um dia você, como Josef K., também é processado. Você, como K., também desconhece as leis que regem tal processo, mas não tarda a sentir seu peso. Você agora é um réu: viver é nada mais que defender-se da primeira acusação. Se dá conta que o processo nunca termina, parece que sequer teve início, que já tramitava contra ti muito antes de você ter nascido. Você leu Kafka e sabe que, numa ação dessa natureza, a condenação é praticamente inevitável, e se recorre em vão a advogados é só pra fingir que não está sozinho. Mas você está sozinho e sabe disso  aquela porta da Lei é só sua e segue intransponível. É bem verdade que está livre pra fugir, mas fugir é inútil: o tribunal está em toda parte, sobretudo dentro de ti. Então você corta os pulsos como último recurso e, por alguns instantes, parece se libertar das amarras da Lei; mas logo entende que também essa sangria é uma fase do processo: foi declarado culpado no banheiro do seu quarto, é você mesmo seu carrasco e não lhe está dado ver no espelho os olhos do juiz, porque os seus já vão fechando lentamente...


16/04/2019

Canção passeriforme


Escrever um poema
que guarde a forma
de um pássaro
enquanto asa
 um pássaro
vivendo um voo
por sobre o branco
da página;

e que nesse poema
em forma de pássaro
que bate as asas,
talvez um pássaro
feito de canto
nasça.

Escrever um pássaro de puro encanto
que num espanto ultrapasse
o branco da
página

22/02/2019

Alcançar o poema


*Foto de Daido Moriyama, Homecoming, Tachikawa1969


Bobagem, não é difícil alcançar o poema,
agora mesmo se eu quisesse eu poderia
tocá-lo, seu rosto carmesim e se o toco?
será que desmancha? será que evola feito
pólen, feito séculos? o poema, essa flor
metafísica e tão física, quer enrabar o país,
o poema, essa coisa desmedida como o amo,
como posso prever sua respiração, a respiração
de um suicida que nunca há de matar-se, desses
que vivem eternamente e sentam ao nosso lado
na sala de espera, no ônibus, naquele dia
no metrô, no uber que leva a lugar algum só
vá seguindo moço sempre em frente que o
poema está comigo, está conosco, e no entanto
o perdemos pouco a pouco, acelere por favor,
o poema está ali, penso podíamos ser amigos,
quem sabe amantes e nos beijarmos sem pudor,
olha a cara dos passantes, como nos odeiam e
nos querem, querem comer-nos, nos matar, eu
que sou virgem, esta flor, mas não morremos,
somos praga, duas fragas que se querem (mas
há o mar), o poema é imortal, ele se salva e
a nós todos, os mundos sustentados no poema,
essa carcaça onde se senta um beija-flor,
vamos seguindo, posso prevê-lo mas nunca sei
o que fazer: será que abaixo as suas calças,
lambo em seguida todo seu corpo? posso eu
suportá-lo, seu longo osso, suas palavras
depreciativas? será que dizem tudo o que
podem, será que encantam, que asfixiam?
esse poema, seiva primeva, devo sorvê-la
até o caroço? será que é grosso? meu
educado poema, esse herói de calças jeans,
posso descer com ele às três da tarde, pedir
um suco, dividir um açaí? ou perguntar coisas
essenciais: quer minha nutella? sentar no
meu colo? chove amanhã? e Deus existe?
mas é São Paulo e ele segue, vai semovente
pela avenida, a gente ao lado indiferente,
e já está longe, aqui comigo, mais um poema
diluído nas enchentes, choventina, um mar de
gente às seis da tarde, hora em que as crianças
se perdem pra sempre, foram pra Disney,
foram estupradas, foram cortadas em
pedacinhos, extraviadas no caminho de casa,
pedem bala agora a qualquer um que passa,
viraram ramagens, paralelepípedos, xérox
escuros de rostos nos postes e olha só outro
poema perdido, procura-se ser lusco-fusco,
sete mil anos, sonhava frequentemente com
pássaros quebrando os vidros, invadindo a
casa, foi visto última vez na Rua Aurora com
um estranho pacote nas mãos (ou era um
pacote do Burguer King apenas), e como
teríamos salvado vidas, ido a igreja todo
domingo, mijado em lírios e mendigos, enfim
sido feliz sido feliz sido feliz sido feliz sido feliz.

31/01/2019

Eu fiz nosso amor caber em 4 haikais


(Passado)
Anota meu número
para o caso
da gente se ligar

(Presente)
Eu curti até
aquelas tuas fotos ridículas
em Angra

(Futuro)
A gente pelo menos
ainda se abraça
nas fotografias

(Pretérito mais-que-perfeito)
Se tudo der errado
a gente se encontra
no link abaixo:

26/01/2019

Sucata

Vendo poemas reciclados.

Os cato do chão, matéria
barata, verbo luminoso
em rio bosteiro.
Escolho as palavras
que ainda prestam
(é quase todas, inclusive
seborreia).
Amontoo tudo em
definitivos versos.
É um trabalho sujo.

Quando prontos,
estendo os poemas em longos varais feitos de tripas
humanas
e sem amor os entrego
a qualquer um que pague
o preço da sucata viva
que ofereço.

E quem me flagrasse nessas transações
de beira de estrada, veria um vendedor
e sua mercadoria.
Mais nada.

A. F.

20/01/2019

Não vieram só belas suíças


Quando Dom João mandou povoar aquelas serras
provincianas, não vieram só belas suíças,
mas também alemães com suas futuras guerras,
e gordos padres com suas estranhas missas;

também algumas linhas, agulhas & freiras
tementes ao Senhor e à alta costura (e hoje
quatro de cada dez mulheres brasileiras
usam lingerie de Friburgo — toda noite);

e vieram jovens pálidos de puberdade
que escreviam poemas feios de amor (e
eram comidos, às vezes, por goitacazes).

E tanto aprimoraram na suecada que,
se já a velha Friburgo não vale uma trova,
em mil sonetos não há de caber a Nova.

A. F.