1
Minha cidadezinha, eu bem queria
te descrever enquanto o céu inda arde,
enquanto corpos não bloqueiam as vias,
tão cedo transviados, mas é tarde...
Minha cidadezinha, eu bem queria
te descrever enquanto o céu inda arde,
enquanto corpos não bloqueiam as vias,
tão cedo transviados, mas é tarde...
Fosse eu inda pequeno, eu brincaria
de te romantizar e sem alarde
multiplicar, em versos, a entropia
do sol de teus heróis. Mas e os covardes?
de te romantizar e sem alarde
multiplicar, em versos, a entropia
do sol de teus heróis. Mas e os covardes?
Alguém falseou os pesos da balança,
hoje essa cruel certeza me invade:
não dá mais pra brincar de ser criança.
hoje essa cruel certeza me invade:
não dá mais pra brincar de ser criança.
Não dá mais pra brincar com esta cidade.
Que esta cidade é grande e logo cansa
de brincar de fingir que é de verdade.
Que esta cidade é grande e logo cansa
de brincar de fingir que é de verdade.
2
Queria eternizar só o bonito
— aquela rutilante face. Mas
Queria eternizar só o bonito
— aquela rutilante face. Mas
quanto mais pela cidade eu transito,
em meio à prostitutas e chacais,
em meio à prostitutas e chacais,
mais escuto por trás do canto um grito.
"Bem-vindos", diz na entrada, mas atrás
da placa de Hell Preto está escrito:
"Deixai toda a esperança vós que entrais!"
"Bem-vindos", diz na entrada, mas atrás
da placa de Hell Preto está escrito:
"Deixai toda a esperança vós que entrais!"
No escuro, sem qualquer delicadeza,
se estende, qual imenso escaravelho,
um tecido ancestral de água e torpeza.
se estende, qual imenso escaravelho,
um tecido ancestral de água e torpeza.
Já foi-se há muito o sol e seu vermelho,
e nas imundas águas da represa
Rio Preto enfim se enxerga no espelho.
Rio Preto enfim se enxerga no espelho.
3
E como é bela e vil, esta imagem
não cabe num soneto do interior.
Há dentro de Rio Preto outra cidade:
uma é pro público, outra é pro ator.
E como é bela e vil, esta imagem
não cabe num soneto do interior.
Há dentro de Rio Preto outra cidade:
uma é pro público, outra é pro ator.
Uma é pra quem está só de passagem,
outra é pro condenado morador;
pra uns pode ser última paragem,
pra outros é o além do Bojador.
outra é pro condenado morador;
pra uns pode ser última paragem,
pra outros é o além do Bojador.
Em Rio Preto, de noite, capivaras
degolam travestis, e moças mugem
enquanto cães realizam velhas taras.
degolam travestis, e moças mugem
enquanto cães realizam velhas taras.
Assassinado, um cisne é só penugem.
Esta outra face que a gente mascara
é menos purpurina e mais ferrugem.
A. F.
Esta outra face que a gente mascara
é menos purpurina e mais ferrugem.
A. F.
Obrigado, Marcos. No interior, a maldade faz parte da cor local.
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