22/02/2019

Alcançar o poema


*Foto de Daido Moriyama, Homecoming, Tachikawa1969


Bobagem, não é difícil alcançar o poema,
agora mesmo se eu quisesse eu poderia
tocá-lo, seu rosto carmesim e se o toco?
será que desmancha? será que evola feito
pólen, feito séculos? o poema, essa flor
metafísica e tão física, quer enrabar o país,
o poema, essa coisa desmedida como o amo,
como posso prever sua respiração, a respiração
de um suicida que nunca há de matar-se, desses
que vivem eternamente e sentam ao nosso lado
na sala de espera, no ônibus, naquele dia
no metrô, no uber que leva a lugar algum só
vá seguindo moço sempre em frente que o
poema está comigo, está conosco, e no entanto
o perdemos pouco a pouco, acelere por favor,
o poema está ali, penso podíamos ser amigos,
quem sabe amantes e nos beijarmos sem pudor,
olha a cara dos passantes, como nos odeiam e
nos querem, querem comer-nos, nos matar, eu
que sou virgem, esta flor, mas não morremos,
somos praga, duas fragas que se querem (mas
há o mar), o poema é imortal, ele se salva e
a nós todos, os mundos sustentados no poema,
essa carcaça onde se senta um beija-flor,
vamos seguindo, posso prevê-lo mas nunca sei
o que fazer: será que abaixo as suas calças,
lambo em seguida todo seu corpo? posso eu
suportá-lo, seu longo osso, suas palavras
depreciativas? será que dizem tudo o que
podem, será que encantam, que asfixiam?
esse poema, seiva primeva, devo sorvê-la
até o caroço? será que é grosso? meu
educado poema, esse herói de calças jeans,
posso descer com ele às três da tarde, pedir
um suco, dividir um açaí? ou perguntar coisas
essenciais: quer minha nutella? sentar no
meu colo? chove amanhã? e Deus existe?
mas é São Paulo e ele segue, vai semovente
pela avenida, a gente ao lado indiferente,
e já está longe, aqui comigo, mais um poema
diluído nas enchentes, choventina, um mar de
gente às seis da tarde, hora em que as crianças
se perdem pra sempre, foram pra Disney,
foram estupradas, foram cortadas em
pedacinhos, extraviadas no caminho de casa,
pedem bala agora a qualquer um que passa,
viraram ramagens, paralelepípedos, xérox
escuros de rostos nos postes e olha só outro
poema perdido, procura-se ser lusco-fusco,
sete mil anos, sonhava frequentemente com
pássaros quebrando os vidros, invadindo a
casa, foi visto última vez na Rua Aurora com
um estranho pacote nas mãos (ou era um
pacote do Burguer King apenas), e como
teríamos salvado vidas, ido a igreja todo
domingo, mijado em lírios e mendigos, enfim
sido feliz sido feliz sido feliz sido feliz sido feliz.