30/05/2019

Ave Maria Sapatã


Maria Sapatã, Sapatã, Sapatã
De dia é Maria, de noite, Lesbiatã





As sapas tem pouca vida
real e mesmo nas novelas
são por vezes explodidas
dentro do shopping. Mas elas

vão vivendo como podem,
da forma que mais convém:
vez ou outra, quando fodem,
descarrilham méis e trens,

capotam carros na estrada,
derrubam aviões também
com suas rotas transviadas
para os clitóris do além.

De manhã são encontradas
nuas em quartos de hotéis,
docemente assassinadas
por obscuros quartéis,

entre garrafas vazias
e consolos de hortelã.
Não você: você, Maria,
não é sapa, é sapatã.

Mas Maria, as sapas, elas
nunca cansam de morrer.
Umas pulam da janela,
outras pulam de prazer.

Com seus vibradores voam
em banheiras ou chuveiros,
e seus corpos se amontoam
diariamente nos banheiros,

umas eletrocutadas,
outras se olhando no espelho
e não vendo nada. Nada
além de um ser de esguelho.

De manhã são encontradas
em decúbito dorsal
por suas fiéis empregadas
que usam Veja, soda e cal.

Mas Maria, as sapas, elas
morrem todo santo dia,
mesmo aquelas que são belas,
mesmo as filhas de Maria.

Morrem muito no cinema,
no teatro, nas revistas,
nos artigos, nos poemas
e no ginecologista;

morrem tomando cerveja
com as amigas no domingo,
morrem indo pra igreja,
morrem voltando do bingo.

De manhã são encontradas
em decúbito ventral,
secamente violadas
em manchetes de jornal,

entre as notícias do dia
e as promoções da Havan.
Não você. Você, Maria,
não é sapa, é sapatã.

Dizem que em média, Maria,
uma sapa é assassinada
trinta e três vezes ao dia.
Na avenida, na calçada,

no parque, na homilia,
no ônibus, no elevador
no almoço de família,
no twitter, no humor,

no uber, na padaria,
no colégio, no divã,
não você: você, Maria,
não é sapa, é sapatã.

Mas Maria, as sapas, elas
já estão por toda parte,
em seus quartos sem janela
vive um sol que brilha e arde.

Para seres que, sem gozo,
se vomitam e se enlamam,
há nada mais perigoso
que duas sapas que se amam.

Duas sapas que se amam
incomodam muita gente,
cada vez que elas se engancham
tomba fulminado um ente.

É por isso que as sapatas
são por vezes encontradas
desovadas, meio às matas,
quais aranhas enroscadas.

Duas sapas numa moto
desencadeiam aneurismas;
muitas sapas, quando em foco,
revoluções, cataclismas.

É por isso que as sapatas
aparecem sobrepostas
em suas casas (casamatas),
suicidadas, decompostas.

No aeroporto, quantas malas
levam sapas picotadas...
Basta olhar: em cada opala
há uma sapa esquartejada.

Não você. Você, Maria,
não se dá com morte vã.
Se de dia é Maria,
de noite é Lesbiatã.

AVE MARIA SAPATÃ,
metade sapa, sapata,
e outra metade Satã.
Você vive em quem te mata,

nos buracos mais profundos.
Nova mulher das cavernas,
você leva o fim do mundo
guardado por entre as pernas.

Nunca vão te perdoar
por não ter dado a luz,
que guardada, qual penhoar,
entre tuas pernas reluz.

Por jamais querer viver
à sombra de algum Jesus,
Sapatã, vai ser você
quem vão pregar numa cruz.

Eles te apedrejarão
em cada praça ou esquina,
mas pedras não chegarão
a sua alma luciferina.

Com frequência, Sapatã,
vão te estuprar. Tentarão
e no entanto virgem, sã,
em quem conhece a oração.

Uma oração nunca morre.
Depois do insano calvário,
virá sua glória, e ela escorre
pelos lábios de um rosário.


21/05/2019

Mulher confundida com nuvem




Essa mulher gostava
de pisar o chão,
mas muito cedo a botaram,
intocável, no céu
se aproveitando
da inconstância típica
da sua espécie.
Apontaram dedos
para a mulher de ar
e disseram eu vejo um rosto,
e disseram eu vejo um bicho,
e disseram eu vejo um sexo,
a mulher, leve, flutuava
em pleno domingo
se moldando aos caprichos
do olhar de quem a visse,
até que juntou-se a outra,
até que juntou-se a várias,
até que a mulher nublou
e choveu sobre toda a gente,
gotas da mulher prenderam-se
nos fios elétricos,
a mulher encheu bueiros,
inundou escritórios,
causou catástrofes
e alguns resfriados,
a mulher secou
junto às roupas do varal,
deu de beber a gatos
de cemitério,
engendrou arco-íris
em becos sinistros.
Os pais falam em fuga,
os jornais em assassinato,
mas as gramas da praça
conhecem a verdade.


17/05/2019

Você também



"Tudo pertence ao tribunal."
(Kafka, O processo)


Um dia você, como Josef K., também é processado. Você, como K., também desconhece as leis que regem tal processo, mas não tarda a sentir seu peso. Você agora é um réu: viver é nada mais que defender-se da primeira acusação. Se dá conta que o processo nunca termina, parece que sequer teve início, que já tramitava contra ti muito antes de você ter nascido. Você leu Kafka e sabe que, numa ação dessa natureza, a condenação é praticamente inevitável, e se recorre em vão a advogados é só pra fingir que não está sozinho. Mas você está sozinho e sabe disso  aquela porta da Lei é só sua e segue intransponível. É bem verdade que está livre pra fugir, mas fugir é inútil: o tribunal está em toda parte, sobretudo dentro de ti. Então você corta os pulsos como último recurso e, por alguns instantes, parece se libertar das amarras da Lei; mas logo entende que também essa sangria é uma fase do processo: foi declarado culpado no banheiro do seu quarto, é você mesmo seu carrasco e não lhe está dado ver no espelho os olhos do juiz, porque os seus já vão fechando lentamente...