31/01/2019

Eu fiz nosso amor caber em 4 haikais


(Passado)
Anota meu número
para o caso
da gente se ligar

(Presente)
Eu curti até
aquelas tuas fotos ridículas
em Angra

(Futuro)
A gente pelo menos
ainda se abraça
nas fotografias

(Pretérito mais-que-perfeito)
Se tudo der errado
a gente se encontra
no link abaixo:

26/01/2019

Sucata

Vendo poemas reciclados.

Os cato do chão, matéria
barata, verbo luminoso
em rio bosteiro.
Escolho as palavras
que ainda prestam
(é quase todas, inclusive
seborreia).
Amontoo tudo em
definitivos versos.
É um trabalho sujo.

Quando prontos,
estendo os poemas em longos varais feitos de tripas
humanas
e sem amor os entrego
a qualquer um que pague
o preço da sucata viva
que ofereço.

E quem me flagrasse nessas transações
de beira de estrada, veria um vendedor
e sua mercadoria.
Mais nada.

A. F.

20/01/2019

Não vieram só belas suíças


Quando Dom João mandou povoar aquelas serras
provincianas, não vieram só belas suíças,
mas também alemães com suas futuras guerras,
e gordos padres com suas estranhas missas;

também algumas linhas, agulhas & freiras
tementes ao Senhor e à alta costura (e hoje
quatro de cada dez mulheres brasileiras
usam lingerie de Friburgo — toda noite);

e vieram jovens pálidos de puberdade
que escreviam poemas feios de amor (e
eram comidos, às vezes, por goitacazes).

E tanto aprimoraram na suecada que,
se já a velha Friburgo não vale uma trova,
em mil sonetos não há de caber a Nova.

A. F.

12/01/2019

Rio Preto: a face escura

1
Minha cidadezinha, eu bem queria
te descrever enquanto o céu inda arde,
enquanto corpos não bloqueiam as vias,
tão cedo transviados, mas é tarde...

Fosse eu inda pequeno, eu brincaria
de te romantizar e sem alarde
multiplicar, em versos, a entropia
do sol de teus heróis. Mas e os covardes?

Alguém falseou os pesos da balança,
hoje essa cruel certeza me invade:
não dá mais pra brincar de ser criança.

Não dá mais pra brincar com esta cidade.
Que esta cidade é grande e logo cansa
de brincar de fingir que é de verdade.

2
Queria eternizar só o bonito
— aquela rutilante face. Mas
quanto mais pela cidade eu transito,
em meio à prostitutas e chacais,

mais escuto por trás do canto um grito.
"Bem-vindos", diz na entrada, mas atrás
da placa de Hell Preto está escrito:
"Deixai toda a esperança vós que entrais!"

No escuro, sem qualquer delicadeza,
se estende, qual imenso escaravelho,
um tecido ancestral de água e torpeza.

Já foi-se há muito o sol e seu vermelho,
e nas imundas águas da represa
Rio Preto enfim se enxerga no espelho.

3
E como é bela e vil, esta imagem
não cabe num soneto do interior.
Há dentro de Rio Preto outra cidade:
uma é pro público, outra é pro ator.

Uma é pra quem está só de passagem,
outra é pro condenado morador;
pra uns pode ser última paragem,
pra outros é o além do Bojador.

Em Rio Preto, de noite, capivaras
degolam travestis, e moças mugem
enquanto cães realizam velhas taras.

Assassinado, um cisne é só penugem.
Esta outra face que a gente mascara
é menos purpurina e mais ferrugem.

A. F.