12/01/2019

Rio Preto: a face escura

1
Minha cidadezinha, eu bem queria
te descrever enquanto o céu inda arde,
enquanto corpos não bloqueiam as vias,
tão cedo transviados, mas é tarde...

Fosse eu inda pequeno, eu brincaria
de te romantizar e sem alarde
multiplicar, em versos, a entropia
do sol de teus heróis. Mas e os covardes?

Alguém falseou os pesos da balança,
hoje essa cruel certeza me invade:
não dá mais pra brincar de ser criança.

Não dá mais pra brincar com esta cidade.
Que esta cidade é grande e logo cansa
de brincar de fingir que é de verdade.

2
Queria eternizar só o bonito
— aquela rutilante face. Mas
quanto mais pela cidade eu transito,
em meio à prostitutas e chacais,

mais escuto por trás do canto um grito.
"Bem-vindos", diz na entrada, mas atrás
da placa de Hell Preto está escrito:
"Deixai toda a esperança vós que entrais!"

No escuro, sem qualquer delicadeza,
se estende, qual imenso escaravelho,
um tecido ancestral de água e torpeza.

Já foi-se há muito o sol e seu vermelho,
e nas imundas águas da represa
Rio Preto enfim se enxerga no espelho.

3
E como é bela e vil, esta imagem
não cabe num soneto do interior.
Há dentro de Rio Preto outra cidade:
uma é pro público, outra é pro ator.

Uma é pra quem está só de passagem,
outra é pro condenado morador;
pra uns pode ser última paragem,
pra outros é o além do Bojador.

Em Rio Preto, de noite, capivaras
degolam travestis, e moças mugem
enquanto cães realizam velhas taras.

Assassinado, um cisne é só penugem.
Esta outra face que a gente mascara
é menos purpurina e mais ferrugem.

A. F.