11/11/2018

A Balada da Bala


   Fomos convidados pra Balada da Bala. Na porta da balada estava escrito:

AQUI NÃO SE BAILA, SE CALA
ASSINADO: O MITO

   Fomos convidados, viemos porque quisemos. Estava tudo no panfleto. Viemos porque não o lemos.
   A batida era marcada pelo pelotão de fuzilaria:
   — Ninguém sai desta balada sem uma bala na bacia!
   O pelotão era formado de homens pequeninos. Um clube tosco composto SÓ DE MENINOS. (Na Balada da Bala homens pequenos se tornavam homens pequenos com armas.)
   E na balada a gente ia virando história — história de terror que não assusta —, nossos cadáveres tombando em memória do Coronel Brilhante Ustra. Primeiro iam ficando obsoletos todos os tons de preto. Depois era a vez dos invertidos entrarem nos caixões, armários de onde não deviam ter saído. Dizia no panfleto que gente branca não pagava, mas no paredão até eles conseguiam uma vaga. Na hora do show os crentes botavam a bíblia no peito — mas morriam do mesmo jeito...
   Tinha a senhora, coitada, que berrava:
   — Eu ajudei a organizar a balada!
   Mas ali a sua palavra também não valia nada já que ela não servia nem para ser estuprada como faziam com as pretas, com as sapatas ajeitadas, e em casa, com suas esposas belas e recatadas, e foi gritando, gritando, até tombar, enfim, calada.
   Também tombavam, abatidos, aqueles que tinham asas — e que, por isso, contrariavam 64 leis da casa.
   E tinha os que sussurraram na balada, sorridentes:
   — O anfitrião é um canalha.
   E pelo ato inconsequente não só eram metralhados como perdiam alguns dentes.
   — Há um engano, meus preclaros, eu também sou emergente!
   Mas era tênue a linha entre ser e não ser gente.
   — Sim, eu moro na favela, mas juro sou diferente!
   Mas as regras eram claras: primeiro atira, depois prende.
   — E vão me matar por quê? se também fui conivente…
   Ficou por último pra ver morrerem amigos e parentes.
   — Eu juro que não peguei, Dona Cláudia, eu sou decente!
   Mas não tinha o que dizer. Pela cor, era evidente…
   — Aceito a música se ela é pro bem da nossa gente.
   De todos eram os que tombavam mais facilmente.
   — O meu pai é militar!
   — Fomos sempre obedientes!
   Mas morriam, que ainda não haviam corpos suficientes…
   E a cada hora chegavam mais homenzinhos de terno que uns chamavam de governo, outros, karma. Vinham pra nos assistir. E a cada hora entravam mais sapatas trans viados pra serem todos passados pelas armas. E o governo ou karma a rir…
   E era uma banho de sangue… e era um sangue tão lindo… era melhor que bang-bang… era melhor que vinho tinto… era a gente acabando… eram eles sorrindo…
   E no entanto éramos tantos, mortos matados, mortos em bando, éramos corpos retorcidos, abraçados, comprimidos, corpos sumariamente adormecidos, corpos precocemente anoitecidos, corpos que assim unidos já não eram corpos mas um imenso Corpo, mas um estranho corpus de uma pesquisa trágica e sem escopo conhecido.
   Os seguranças da noite não estavam preparados pra lidar com nosso ser. Com aquele imenso morto que foi levantando, contrariando a métrica e as leis dos corvos, forjando um novo acontecer.
   Éramos um corpo estranho, um corpo assim, nem menina nem menino, de Marias, Anas, Joãos, Triolés e Alexandrinos, de sacros e afros, de safados, sáficos, um corpo que era eu e era você, um corpo feio um corpo lindo. Éramos muitos corpos, éramos um só corpo, uma estrutura armada de blocos livres, sonetos, sonetetos, sonetilhos, espartanos e espartilhos...
   Resumindo: os homenzinhos vieram com tanques, aeroplanos e tudo quanto era bomba H. Miravam em todas as partes do Corpo, mas por mais que atirassem não conseguiam matar o que já estava morto. Morto, sim, mas ao vivo, pois trouxeram a tv, e as escadas magírus pra chegar até nós, mas por mais que subissem só conseguiam alcançar o nosso imenso umbigo — o nosso umbigo atroz! Vencidos, humilhados, só restou-lhes orar ao seu deus de araque. Não sabiam, coitados, da missa a metade…
   Sentados, ficaram a ver aquela coisa nova que ninguém sabia se prosa ou poesia. Aquela coisa tremenda que cedo ou tarde os pisaria. Aquele coisa éramos nós. Em nós já não havia esperança, mas havia a vontade de criar um universo em que pudéssemos viver ou nos matar. Não havia um poema, mas um verso que pelo menos nos cabia, uma balada em que podíamos dançar sem motivo, qual um balé de desgraçados, como fazem os versos livres, como fazem os versos de pés quebrados. Como fazem os vivos. Mesmo já paralíticos, dançar num duro e engessado ritmo. Não havia esperança, mas havia a vontade de forjar um coração que apesar deles bateria. Uma vontade de falar — sobretudo nos gagos e nos mudos — que bala alguma calaria. Uma vontade enorme de gozar e inundar tudo. Já não havia esperança, mas azia. Vontade de vomitar sobre essa gente pequena e vazia. E de sair sem pagar a consumação...
   Arrombamos, então, as portas da balada, e encaramos, heróicos, a alvorada do novo dia.
A. F.

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